Negras médicas e domésticas
RETIRADO DO SITE PRAGMATISMO POLÍTICO www.pragmatismoplotico.com.br
Postado em: 28 ago 2013 às 11:01
No Brasil, a cara define sua profissão, o seu poder e a sua preferência
no trânsito da vida profissional. A vinda de tantos médicos e médicas negras
para o Brasil é um choque terapêutico para entendermos a profundidade do
apartheid brasileiro
Poderia ser natural em meu Brasil,
qualquer criança ou pessoa me perguntar qual a minha profissão, se eu
responder, que sou médico, mesmo vestido de branco, feito respondi uma vez a
uma balconista negra que me servia café, ela olhou desconfiada e me disse que
pensava que eu parecia mais pai de santo, quando lhe afirmei que na verdade sou
sociólogo, ela me olhou mais espantada ainda, dizendo, feito o presidente
Fernando Henrique?
São situações naturais para qualquer negro no Brasil estas que acontecem
no dia a dia com a gente, não somos o que somos apenas o que nascemos pra ser.
Nascemos pra sermos nada ou quase nada.
Eu mesmo me flagro volta e meia ao conversar com as pessoas, com uma
dúvida interior, que me faz perguntar no íntimo, será que o cara tá acreditando
em mim, será que eu estou me apresentando mais do que devia para convencer o
cara interlocutor, que eu sou o que sou e tenho a experiência que tenho? Será
que não exagero ao me descrever, para convencer ao outro que sou eu mesmo o que
sou?
Natural prá gente é ser servendte,
empregado doméstico, supervisor de segurança se estiver de terno e até
manobreiro, que alguém entrega a chave enquanto a gente espera a namorada
chegar para nos encontrar em um restaurante fino.
Não importa se o interlocutor é negro ou branco, cortamos um dobrado para convencê-lo de que somos o que somos e basta.
Não importa se o interlocutor é negro ou branco, cortamos um dobrado para convencê-lo de que somos o que somos e basta.
Nos meus vinte anos na Europa, quando
sentava em um bar, poderia estar ao meu lado uma chanceler da república ou uma
empregada doméstica, que se eu não conhecesse pela foto, não saberia quem é
quem.
Aqui não, se é branco é alguém, se não é branco que nos convença.
Aqui no Brasil se tem
cara e não se tem cara e a cor da cara ajuda a definir a profissão, a posição e
o poder diagnosticado na pessoa que você se confronta. Dependendo da nossa
avaliação ou pedimos licença, ou passamos por cima. Quase sempre tem dado certo
prá todo mundo. Quando não dá certo e alguém grita racismo, vem logo a
desculpa, mas foi um mal entendido, esta não foi a nossa intenção.
Aqui a cara define a sua profissão, o
seu poder e a sua preferência no trânsito da vida profissional. crianças que
reconhecem tudo no espírito, é um problema identificar uma pessoa negra no seu
cotidiano,que não faça parte do universo de pessoas a que esta criança esteja
acostumada a ver as pessoas negras.
Médicas, engenheiras, arquitetas,
presidentas escapam até para estas crianças do universo de domésticas a que
elas estão acostumadas a verem suas mães, tias, quando são crianças negras, e
babás quando são de crianças brancas que falamos.
Assim quando a jornalista potiguar Micheline Borges causa uma revolta nas redes sociais ao expressar sua opinião sobre os médicos cubanos que estão chegando ao Brasil para trabalhar no programa “Mais Médicos”. “Perdoem-me se for preconceito, mas essa médica cubana tem uma cara de empregada doméstica”, como afirmou a repórter, me causa certo espanto, sobre o porquê de tanta revolta do público feissebuquiano, quando ela falou o que a maioria destes leitores pensa.
Assim quando a jornalista potiguar Micheline Borges causa uma revolta nas redes sociais ao expressar sua opinião sobre os médicos cubanos que estão chegando ao Brasil para trabalhar no programa “Mais Médicos”. “Perdoem-me se for preconceito, mas essa médica cubana tem uma cara de empregada doméstica”, como afirmou a repórter, me causa certo espanto, sobre o porquê de tanta revolta do público feissebuquiano, quando ela falou o que a maioria destes leitores pensa.
A infeliz cometeu apenas
a besteira de confirmar o racismo que a maioria dos brasileiros carrega dentro
do coração todos os dias.
Ninguém se espanta nem
vai para as redes, perguntar por que só tem médicos brancos no Brasil.
Todos estão para lá de
mal acostumados em verem cenas de filas negras esperando no SUS, e há 8 horas
as filas de brancos estacionando os seus carros e descendo para atravessar
aqueles mares negros de pessoas humanas de pele preta ou amareladas de fome,
que sempre estão a sua espera.
Foi chocante assistir a
chegada dos médicos cubanos em São Paulo, a foto estampada nos jornais chocou
até a mim, homem vivido neste mundo planetário. Deus dos Céus, um monte de
mulheres e homens com as caras dos peixeiros de nossas esquinas, fortes como os
entregadores de gás do dia a dia, e com aquele olhar afável das nossas queridas
empregadas domésticas, isto não estava no meu enredo de vida como um brasileiro
negro, pois eram e são todas e todas as médicas e médicos.
Quiseram os Deuses, via a transversal do comunismo, dar um choque
terapêutico no nosso racismo, tão querido como um calo conservado de nossas
avós?
E ainda aparecem uns
jornalistas, que parecem que descobriram a pólvora do racismo brasileiro, a
dizerem-se solidários com os cubanos, que sentem vergonha pelo racismo dos
médicos brasileiros. Outros menos jornalistas também sentem vergonha, como se o
assunto não fosse com eles.
Meu avõ sempre dizia vergonha de quem não se reconhece racista e
lágrimas de crocodilos, não acabam com o racismo, nem enchem copo de quem tem
sede por justiça e igualdade.
Tem mais de 125 anos que
nós negros lutamos para termos acesso às escolas e quanto mais estudou, mais as
escolas de “excelência” ficam brancas.
Tem mais de 40 anos que lutamos por cotas, levamos 10 anos na justiça,
ganhamos, mas não levamos a quina, pois universidades como a de São Paulo,
sempre arranjam um jeito de não permitirem nossa entrada.
Numa esquina perto de
minha casa vejo todo dias dois mares de cores crianças se cruzarem, de um lado
uma escola privadas, escola de excelência que forma prefeitos e governadores.
As crianças brancas atravessam a rua em direção a zona rica da cidade. Do outro
lado tem a Escola Pública, que forma as empregadas domésticas e os peixeiros da
esquina.
As crianças se cruzam, pretas para as favelas e brancas pra os play
grounds. Sinto que estamos enchendo um balde furado. Nossas crianças negras
estão marcadas para perderem e morrerem.
Que a foto desta negrada
cubana estampada nos jornais, tenha o mesmo efeito que a foto de Pelé teve na
África do Sul, quando publicada na primeira página em 1958. Foi a primeira foto
de um negro na primeira página de um jornal da África do Sul. A foto de Pelé
inspirou muitos jovens negros da época, como me disse Desmond Tutu, ao verem
que elas, crianças negras poderiam ser o que desejassem. Levaram 30 anos e
estão conseguindo.
A vinda de tantos médicos e médicas negras para o Brasil (apesar de ser
tão pouquinho café neste balde de leite que é o sistema de poder curador do
Brasil)é mais do que um exemplo de ação para a saúde física de nosso povo
racista até nas entranhas, é um choque terapêutico para entendermos a
profundidade do apartheid brasileiro.
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