por M.
Amadou Mahtar M’Bow,
Diretor Geral da UNESCO (1974-1987)
Durante
muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie esconderam do mundo a real
história da África. As sociedades africanas passavam por sociedades que não
podiam ter história. Apesar de importantes trabalhos efetuados desde as
primeiras décadas do século XX por pioneiros como Leo Frobenius,
MauriceDelafosse e Arturo Labriola, um grande número de especialistas não
africanos,ligados a certos postulados, sustentavam que essas sociedades não
podiam ser objeto de um estudo científico, notadamente por falta de fontes e
documentos escritos.
Se
a Iliada e a Odisseia podiam
ser devidamente consideradas como fontes essenciais da história da Grécia antiga,
em contrapartida, negava-se todo valor à tradição oral africana, essa memória
dos povos que fornece, em suas vidas, a trama de tantos acontecimentos
marcantes. Ao escrever a história de grande parte da África, recorria-se
somente a fontes externas à África, oferecendo uma visão não do que poderia ser
o percurso dos povos africanos, mas daquilo que se pensava que ele deveria ser.
Tomando frequentemente a “Idade Média” europeia como ponto de referência, os
modos de produção, as relações sociais tanto quanto as instituições políticas
não eram percebidos senão em referência
ao passado da Europa.
Com
efeito, havia uma recusa a considerar o povo africano como o criador de
culturas originais que floresceram e se perpetuaram, através dos séculos, por vias
que lhes são próprias e que o historiador só pode apreender renunciando acertos
preconceitos e renovando seu método.
Da mesma forma, o
continente africano quase nunca era considerado como uma entidade histórica. Em
contrário, enfatizava-se tudo o que pudesse
reforçar a ideia de
uma cisão que teria existido, desde sempre, entre uma “África branca” e uma “África negra” que se
ignoravam reciprocamente. Apresentava-se frequentemente o Saara como um espaço
impenetrável que tornaria impossíveis misturas entre etnias e povos, bem como
trocas de bens, crenças, hábitos e ideias entre as sociedades constituídas de
um lado e de outro do deserto. Traçavam-se fronteiras intransponíveis entre as
civilizações do antigo Egito e da Núbia e aquelas dos povos subsaarianos.
Certamente,
a história da África norte-saariana esteve antes ligada àquela da bacia
mediterrânea, muito mais que a história da África subsaariana mas, nos dias
atuais, é amplamente reconhecido que as civilizações do continente
africano,pela sua variedade linguística e cultural, formam em graus variados as
vertentes históricas de um conjunto de povos e sociedades, unidos por laços seculares.
Um
outro fenômeno que grandes danos causou ao estudo objetivo do passado africano
foi o aparecimento, com o tráfico negreiro e a colonização, de estereótipos raciais criadores de desprezo e
incompreensão, tão profundamente consolidados que corromperam inclusive os
próprios conceitos da historiografia. Desde que foram empregadas às noções de
“brancos” e “negros”, para nomear genericamente os colonizadores, considerados
superiores, e os colonizados, os africanos foram levados a lutar contra uma
dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado pela pigmentação de sua pele,
transformado em uma mercadoria entre outras, e destinado ao trabalho forçado, o
africano veio a simbolizar, na consciência dê seus dominadores, uma essência
racial imaginária e ilusoriamente inferior: a de negro. Este processo de falsa identificação depreciou a
história dos povos africanos no espírito de muitos, rebaixando-a a uma
etno-história, em cuja apreciação das realidades históricas e culturais não
podia ser senão falseada.
A
situação evoluiu muito desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em particular, desde que
os países da África, tendo alcançado sua independência, começaram a
participar ativamente da vida da comunidade internacional e dos intercâmbios a
ela inerentes. Historiadores, em número crescente, têm-se esforçado em
abordar o estudo da África com mais rigor, objetividade e abertura de espírito,
empregando – obviamente com as devidas precauções –fontes africanas
originais. No exercício de seu direito à iniciativa histórica, os próprios africanos
sentiram profundamente a necessidade de restabelecer, embases sólidas, a
historicidade de suas sociedades.
É
nesse contexto que emerge a importância da Historia
Geral da Africa,
em oito volumes, cuja publicação a Unesco começou.Os especialistas de numerosos
países que se empenharam nessa obra,preocuparam-se,primeiramente, em
estabelecer-lhe os fundamentos teóricos e metodológicos. Eles tiveram o cuidado
em questionar as simplificações
abusivas criadas por
uma concepção linear e limitativa da história universal,
bem como em
restabelecer a verdade dos fatos sempre que necessário e possível.Eles
esforçaram-se para extrair os dados históricos que permitissem melhora acompanhar
a evolução dos diferentes povos africanos em sua especificidade sócio cultural.
Nessa
tarefa imensa, complexa e árdua em vista da diversidade de fontes e da
dispersão dos documentos, a UNESCO procedeu por etapas. A primeira fase
(1965-1969) consistiu em trabalhos de documentação e de planificação da obra.
Atividades operacionais foram conduzidas in
loco,
através de pesquisas de campo: campanhas de coleta da tradição oral, criação de
centros regionais de documentação para a tradição oral, coleta de manuscritos
inéditos em árabe e ajami (línguas africanas escritas em caracteres árabes),
compilação de inventários de arquivos e preparação de um Guia das fontes da historia da África publicado posteriormente,
em nove volumes, a partir dos arquivos e bibliotecas dos países da Europa. Por
outro lado, foram organizados encontros, entre especialistas africanos e de
outros continentes, durante os quais se discutiu questões metodológicas e traçaram-se
as grandes linhas do projeto.
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