A dor que um psicanalista não
entendeu
Porto Alegre, Brasil
MÁRCIA - Jornalista, pesquisadora da UFRGS, pinta patife e filósofa de
boteco. Um dia vou escrever como Leminski e amar como minha avó.
Li, no blog de um psicanalista, que
as manifestações de dor nas redes sociais, em virtude do incêndio na boate
Kiss, eram uma hipocrisia, pois “precisamos fingir que nos importamos”. A mim,
parece que este psicanalista entende pouco de seres humanos, pouquíssimo de
redes sociais e quase nada de Santa Maria.
Não perdi ninguém próximo e mesmo
assim fui atirada em uma tristeza concreta, que durou dias. Uma amiga descreveu
o que sentia como “um cansaço crônico”. Com voz baixa, doída, meu pai se disse
“devastado”. Longe ou perto, vivemos dias de insônia e de lágrimas. Dias de
impotência, fragilidade, incredulidade, silêncio. Dias de chorar pela dor do
outro, imaginando-se no lugar do outro, sentindo pelo outro, sentindo com o
outro. Com os pais, os irmãos, os amigos, os professores. Uma tristeza funda,
que nada tinha de artificial. Aquela tristeza que mostra, cruamente, a
desimportância de todas as coisas. Por que, afinal, doeu verdadeiramente em
tantas pessoas?
É porque ali, talvez alguns se
lembrem, ali não era uma boate. Ali era a distribuidora da Brahma. A
distribuidora do Ives Roth, que para mim era “o pai do Cabeto”. Na frente dali,
não era o Carrefour. Era o colégio Hugo Taylor, a antiga Escola de Artes e
Ofícios, de propriedade da cooperativa dos ferroviários.
Na esquina da Niederauer com a
Floriano não havia uma agência bancária. Era à entrada do colégio Santa Maria.
E na esquina da Floriano com a Presidente Vargas não havia uma farmácia. Era o
bar Em Cena. A cidade vai mudando por fora, mas, de um jeito estranho e
emaranhado, fica sempre a mesma dentro da gente.
A Santa Maria da Boca do Monte
que eu guardo tem o cheiro do pão quentinho da padaria Holterman. Tem a
marcação do sino do colégio Centenário. Tem as cores do sorvete do seu João e a
textura da massa folhada da Copacabana. Esta Santa Maria se fez nas casas
compridas da Vila Belga. Se fez no cine Independência, no Glória e no Glorinha.
Nos bailes de carnaval do Caixeiral e do Tênis. Nas tertúlias, nas festas no
Comercial e no Minuano, no Socepe e no Pinhal.
Na minha memória vivem a galeria
do Comércio, a ponte do Itararé, o prêmio Felipe de Oliveira, a procissão da
Medianeira. Vivem os trens no final da Rio Branco e a aventura de atravessar os
trilhos na Sete de Setembro. Vivem a Feira do Livro, as tartarugas da Saldanha
Marinho, as histórias da Garganta do Diabo.
Santa Maria, a cidade de mil
conexões. Cresce, muda e de algum modo permanece igual. A cidade por onde
passam militares de todos os cantos e estudantes de lugares impensáveis. A
cidade que acolhe quem busca ser mais. Pessoas que chegam e partem, levando a
lembrança do vento norte e da beleza impressionante das montanhas.
Mas a melhor memória não é que
retém nomes e espaços. A memória que aciona a empatia é aquela que reteve emoções
fundas. Primeiro os colégios e os colegas. Depois a universidade e um mundo de
ações coletivas que se desenham a partir da cidade. A Santa Maria que eu guardo
na memória é a do movimento estudantil, dos secundaristas e depois do DCE. A
cidade dos longos debates, das noites pichando poemas que desafiavam a
brutalidade. Das festas, das idéias, das ruas cruzadas em bando nas madrugadas
frias. Nosso caráter era moldado no coletivo.
Tudo isso muda, geração após
geração. Alteram-se os espaços, as causas, os endereços. Os lugares se empilham
na nossa memória, uns sobre os outros, sendo uma coisa, depois outra, e outra,
e assim se fazem as histórias das cidades. Mas meio que muda sem mudar. A
conexão afetiva está lá, e é ela que nos faz olhar para esta tragédia de um
jeito enredado. Alguém disse, no Facebook, que a dor acontecia “na casa de cada
um de nós”. É evidente que existem gradações, diferenças, distinções segundo a
proximidade de cada um. Mas sim, é exatamente isso, acontece verdadeiramente
dentro de cada um de nós. Expressar este sentimento nas redes sociais é o
movimento óbvio, humano, de compartilhar.
Não temos a morte na agenda. Ela
quase sempre nos pega de surpresa. Ela arrebenta, destroça, devasta.
Especialmente quando é prematura e quando é desmedida. Mas também quando a
nossa memória diz que ali não era apenas uma boate. E que na frente dali não
era apenas um supermercado.
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