quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

ESTE TEXTO FOI RETIRADO DA REVISTA CARTA CAPITAL Nº 632 DE 9 DE FEVEREIRO DE 2011. PARA QUEM GOSTA DE ASSSISTIR FUTEBOL COMO EU GOSTO SÓCRATES COLOCA O DEDO NA FERIDA COM MAESTRIA. SÃO ASSIM MESMO AS TRANSMISSÕES DE MUITAS REDES DE TV, DESVIANDO DO QUE INTERESSA QUE É O FUTEBOL, OS CARA FALAM DE TUDO MENOS DO QUE INTERESSA. E ATUALMENTE TEM UM PROBLEMA AINDA MAIOR. A EQUIPE TRANSMITE O JOGO DO ESTÚDIO (MUITAS VEZES) SEM TER NENHUM CONTATO COM O LOCAL DO JOGO

Futebol não é ciência exata
Sócrates 5 de fevereiro de 2011 às 13:04h

          Acho o maior barato acompanhar as transmissões televisivas de futebol nestes tempos que eu chamo de “modernos”. Modernos porque essas transmissões nada têm de futebol propriamente dito, o que ouço na verdade são inumeráveis dados estatísticos que, acredito, a ninguém interessam. Ou muito devo me enganar já que esse tipo de postura é endêmica (quem sabe fruto de uma bactéria gram-negativa originada da inconsistência natural da falta de conhecimento sobre o assunto) na chamada crônica desportiva.
          Que me desculpem as exceções, porém, outro dia, estava a assistir a uma belíssima partida de futebol entre as equipes do Palermo e da Internazionale de Milão, cujo primeiro tempo terminou com a vitória parcial do time mediterrâneo por 2 a 0. Depois de ouvir que um determinado jogador A tinha participado de uma centena mais três jogos com aquela camiseta rosácea, que o outro ainda possuía quatro anos e seis meses de contrato, que o zagueiro central B há 800 minutos não tomava um cartão amarelo (e o jogo correndo sem que qualquer dos comentaristas se preocupasse em passar ao telespectador o que poderia estar ocorrendo em campo), veio a máxima de que aquela defesa não tomava gols há exatos 502 minutos e, pasmem, 15 segundos.
          É claro que não gravei esses valores com a precisão daqueles mestres, mas a incidência e a ênfase dadas ao fato eram de tal forma elevadas que pareciam que mais que o jogo de futebol em si valia a estatística presente na história recente daquela equipe. No meu tempo de estudante, a gente chamava isso de embolação, falta do que dizer ou só uma cola para quando nada tivesse a acrescentar. O pior é que eles às vezes até brincam com suas limitações ao gargalhar de si mesmos quando os dados oferecidos são tantos e sem lógica, apesar de os frisarem como se fossem preciosidades absolutamente incomparáveis.
          No entanto, calhou de a Internazionale fazer um gol, depois mais um e finalmente o terceiro, que a levou à vitória. Caiu, literalmente, a estatística e nada mais se falou do assunto. O novo projeto mais uma vez nada tinha a ver com o evento a que haviam sido chamados a comentar. Passaram a desfilar dados sobre o número de faltas de uma ou outra equipe, a idade do treinador, a quilometragem entre uma cidade e outra, que nem representada estava naquele momento, e tudo o mais que não estivesse em campo. Uma canelada do craque do time nem coçava as cordas vocais dos professores, mas uma trombada entre cabeças já seria motivo de longas explanações sobre o que vocês menos imaginam. Com diria Paulo Henrique Amorim: “Um horror!”
          Menos de uma semana após esta, digamos, aula estapafúrdia de futebol, de novo me vi assistindo ao Palermo; agora contra a Juventus de Turim. Mas a conversa não mudou nem um pouquinho. Três ou quatro dias depois, o assunto continuava o mesmo, só que com uma pequena mudança estrutural: afirmava-se com ares de extraordinário feito que a defesa do Palermo, que tomara três gols em Milão (grifo meu), estava invicta em seu estádio desde, acreditem, 11 de dezembro de 2010, como se esta data determinasse uma eternidade versus os dias de hoje. Seria o mesmo que dizer que, desde o último natal (exatamente duas semanas depois do último gol sofrido), quase nenhum ser houvera recebido sequer um presentinho de Papai Noel. Que tragédia!
          De qualquer forma, agradecemos todos ao estímulo que esses estudiosos nos dão para entendermos que futebol é, antes de tudo, uma ciência exata e que um pouco de aritmética, matemática e estatística não faz mal a ninguém. Muito pelo contrário, sem elas nada entenderíamos desse esporte construído em tabelas periódicas e cavaletes de renomados arquitetos da arte, que, se muito não me engano, só não aparecem em público para receber suas láureas porque são extremamente altruístas, além de muito tímidos em suas essências. Uma pena!
          Mas tem mais. Antes do término do jogo fico sabendo que determinado jogador fora muito elogiado pela cartolagem por seu espírito voluntarioso, que as especulações sobre as contratações eram coisa do passado, já que a “janela” de transferência européia acabara, passando pela beleza ou não das cores da camisa do clube, pela inspiração oferecida por tal jogada de um atleta no tempo da tevê em preto e branco e de um presente que um deles ganhara de um jogador que era uma camisa com defeito e que valeria um absurdo. Por tudo isso eu acredito: recebi uma verdadeira aula; se de futebol, eu não se
Sócrates
Sócrates é comentarista esportivo, foi jogador de futebol do Corinthians, entre outros clubes, e da seleção brasileira

Nenhum comentário:

Postar um comentário