sábado, 1 de dezembro de 2012


INTRODUÇÃO GERAL
Joseph Ki-Zerbo

A Áfricatem uma história.  foi o tempo em que nos mapas-múndi e
portulanos, sobre grandes espaços, representando esse continente então marginal
e servil, havia uma frase lapidar que resumia o conhecimento dos sábios a respeito
dele e que, no fundo, soava também como um álibi: “Ibi sunt leones”.  existem
leões. Depois dos leões, foram descobertas as minas, grandes fontes de lucro, e
as “tribos indígenas” que eram suas proprietárias, mas que foram incorporadas
às minas como propriedades das nações colonizadoras.

Mais tarde, depois das tribos indígenas, chegou a vez dos povos impacientes
com opressão, cujos pulsos  batiam no ritmo febril das lutas pela liberdade.
Com efeito, a história da África, como a de toda a humanidade, é a história
de uma tomada de consciência. Nesse sentido, a história da África deve ser
reescrita. E isso porque, até o presente momento, ela foi mascarada, camuflada,
desfigurada, mutilada. Pela “força das circunstâncias”, ou seja, pela ignorância e
pelo interesse. Abatido por vários séculos de opressão, esse continente presenciou
gerações de viajantes, de traficantes de escravos, de exploradores, de missionários,
de procônsules, de sábios de todo tipo, que acabaram por fixar sua imagem no
cenário da miséria, da barbárie, da irresponsabilidade e do caos. Essa imagem
foi projetada e extrapolada ao infinito ao longo do tempo, passando a justificar
tanto o presente quanto o futuro.
Não se trata aqui de construir uma história-revanche, que relançaria a
história colonialista como um bumerangue contra seus autores, mas de mudar
a perspectiva e ressuscitar imagens “esquecidas” ou perdidas. Torna-se necessário
retornar à ciência, a fim de que seja possível criar em todos uma consciência
autêntica. É preciso reconstruir o cenário verdadeiro. É tempo de modificar o
discurso. Se são esses os objetivos e o porquê desta iniciativa, o como  ou seja,
a metodologia  é, como sempre, muito mais penoso. É justamente esse um dos
objetivos desse primeiro volume da História Geral da África, elaborada sob o
patrocínio da UNESCO.

I. PORQUÊ?

Trata-se de uma iniciativa científica. As sombras e obscuridades que cercam o
passado desse continente constituem um desafio apaixonante para a curiosidade
humana. A história da África é pouco conhecida. Quantas genealogias mal
feitas! Quantas estruturas esboçadas com pontilhados impressionistas ou mesmo
encobertas por espessa neblina! Quantas sequências que parecem absurdas
porque o trecho precedente do filme foi cortado! Esse filme desarticulado e
parcelado, que não é senão a imagem de nossa ignorância, nós o transformamos,
por uma formação deplorável ou viciosa, na imagem real da história da África
tal como efetivamente se desenrolou. Nesse contexto, não é de causar espanto o
lugar infinitamente pequeno e secundário que foi dedicado à história africana
em todas as histórias da humanidade ou das civilizações.
Porém,  algumas décadas, milhares de pesquisadores, muitos de grande
ou mesmo de excepcional mérito, vêm antiga fisionomia da África. A cada ano aparecem dezenas de novas publicações
cuja ótica é cada vez mais positiva. Descobertas africanas, por vezes espetaculares,
questionam o significado de certas fases da história da humanidade em seu
conjunto.
Mas essa mesma proliferação comporta certos perigos: risco de cacofonia
pela profusão de pesquisas desordenadas ou sem coordenação efetiva; discussões
inúteis entre escolas que tendem a dar mais importância aos pesquisadores que
ao objeto das pesquisas, etc. Por essas razões, e pela honra da ciência, tornava-se
importante que uma tomada de posição acima de qualquer suspeita fosse levada
a cabo por equipes de pesquisadores africanos e não-africanos, sob os auspícios
da UNESCO e sob a autoridade de um conselho científico internacional e de
coordenadores africanos. O número e a qualidade dos pesquisadores mobilizados
para esta nova grande descoberta da África denotam uma admirável experiência
de cooperação internacional. Mais que qualquer outra disciplina, a história é
uma ciência humana, pois ela sai bem quente da forja ruidosa e tumultuada
dos povos. Modelada realmente pelo homem nos canteiros da vida, construída
mentalmente pelo homem nos laboratórios, bibliotecas e sítios de escavações, a
história é igualmente feita para o homem, para o povo, para aclarar e motivar
sua consciência.
Para os africanos, a história da África não é um espelho de Narciso, nem um
pretexto sutil para se abstrair das tarefas da atualidade. Essa diversão alienadora
poderia comprometer os objetivos científicos do projeto. Em contrapartida, a
ignorância de seu próprio passado, ou seja, de uma grande parte de si mesmo,
não seria ainda mais alienadora? Todos os males que acometem a África hoje,
assim como todas as venturas que  se revelam, resultam de inumeráveis
forças impulsionadas pela história. E da mesma forma que a reconstituição
do desenvolvimento de uma doença é a primeira etapa de um projeto racional
de diagnóstico e terapêutica, a primeira tarefa de análise global do continente
africano é histórica. A menos que optássemos pela inconsciência e pela alienação,
não poderíamos viver sem memória ou com a memória do outro. Ora, a história
é a memória dos povos. Esse retorno a si mesmo pode, aliás, revestir-se do valor
de uma catarse libertadora, como acontece com o processo de submersão em si
próprio efetivado pela psicanálise, que, ao revelar as bases dos entraves de nossa
personalidade, desata de uma  vez os complexos que atrelam nossa consciência
às raízes profundas do subconsciente. Mas para não substituir um mito por
outro, é preciso que a verdade histórica, matriz da consciência desalienada e
autêntica, seja rigorosamente examinada e fundada sobre provas.

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