sábado, 21 de julho de 2012

A globalização da culinária_TEXTO RETIRADO DA REVISTA "LÍNGUA PORTUGUESA QUE É UMA MARAVILHA PARA TODOS, INCLUSIVE PROFESSORES DE TODAS AS ÁREAS.

A gastronomia pode servir de critério para as relações do povo brasileiro com as palavras estrangeiras
John Robert Schmitz
O vocábulo "gastronoglobalização" é, por óbvio, a fusão das palavras "gastronomia" e "globalização". A globalização é um fenômeno considerado benéfico para alguns e problemático para outros. Faço uso do neologismo para referir-me à importação e exportação ou à troca de "comes e bebes" entre os diferentes países neste mundo cada vez mais interligado.

          Nesta segunda década do século 21, quem viaja pelo mundo e se hospeda em hotéis ou frequenta restaurantes, cantinas e lanchonetes em Londres, Tóquio ou Paris não deixa de notar nos cardápios palavras em pleno português, como "feijoada", "caipirinha", "caipiroska" e "guaraná". O que é agradável ao paladar sempre circula pelo mundo. O tomate, o milho, a batata e o chocolate são originários do continente americano, mas presentes em cozinhas, alpendres, supermercados e quitandas de toda parte. O prato de origem húngara gulyás (grafado "gulache" em português) e o "estrogonofe" são apreciados no mundo inteiro. Os brasileiros que vivem no exterior não precisam esperar o retorno para tomar suas cairpirinhas.

          Quem visita Curitiba não demora a conhecer a iguaria de origem polonesa "pieroque" ou "pirogue", tipo de pastel cozido à base de massa, levedada com diferentes recheios. Um estrangeiro que conhece o Nordeste bem pode descobrir a "cartola", sobremesa de banana fatiada, coberta de queijo, canela e açúcar. Quem anda pelas ruas de Manaus encontra barracas de "tacacá", uma sopa de mandioca, camarões, molho de tucupi e outras especiarias.

          Pode ser que a cartola e o tacacá um dia apareçam no estrangeiro. A internet apresenta páginas com receitas de pirogues, cartolas e tacacás em vários idiomas. Alguns visitantes ao Brasil vão se lembrar dos vocábulos, o que é meio caminho andado para fixar a palavra no exterior. Bons candidatos são o vatapá e o acarajé.

Receitas
No Brasil, é curioso ver que quem reclama de vocábulos como delivery e deletar (do inglês "delete" pelo latim deletum, do verbo delere) não implica com as palavras de origem japonesa que aparecem em cardápios, como temaki, sushi, guioza, teppanyaki, shitake e sashimi. De fato, a cultura alimentícia japonesa é globalizada, segundo o professor Isao Kumakura, docente do Museu Nacional de Etnologia no Japão (The Globalization of Japanese Food Culture).

          A comida italiana está presente no Brasil há muito tempo, mas o avanço de redes nacionais de supermercados estimulou no país a distribuição de caixas e pacotes de diferentes tipos de massas, com nomes (em italiano) pitorescos para nossos padrões, com grafia de origem: farfalle (borboletas), orecchiette (orelhas pequenas), vermicelli (pequenas minhocas) e fusilli (parafusos). Ninguém se queixa da presença desses vocábulos nem os consideram ameaças à sobrevivência do português. 

          Diria que problemas políticos e ideológicos relacionados a palavras de origem estrangeira desaparecem quando se trata das delícias da mesa. O estômago "fala" mais alto. É verdade que há 50 anos nem havia no Brasil as redes de comidas rápidas americana, árabe, italiana, chinesa ou japonesa. A globalização possibilitou a inserção de diferentes cuisines no país. O resultado é que a alimentação ficou mais variada e, graças à criatividade dos chefes e à engenharia de alimentos, mais saborosa. Pois temos suflês e fricassés de legumes e verduras e frappés, mousse e ganaches. Outro resultado é o aumento no número de palavras em português, que exige registro de novas palavras nos dicionários. Quem não sabe a diferença entre sashimi, e sushi, ou entre burrito, taco e nacho, precisa de orientação.


John Robert Schmitz é professor do Departamento de Linguística Aplicada (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

No princípio era a fome
Metáforas de alimentação como gênese de expressão do povo brasileiroPor José Paulo Oliveira
Oswald de Andrade definiu o brasileiro como "uma mistura de floresta com escola, um misto de dormenenêqueobichovempegá com equações".

Nosso falar mole e descansado conserva, perante a comida, um respeitoso vínculo, profundo e quase umbilical.

Vítima da miséria secular, a gente brasileira encontrou nas metáforas ligadas à alimentação uma forma genuína de expressar-se, de representar e recriar o mundo.

Expressões culináriasLinguagem rica, banquete pra mais de mil talheres.

Se vingança é prato que se come frio, o gostinho da vitória terá de ser saboreado.

Desaforos não devem ser engolidos, pessoas inflexíveis e de temperamento forte são pão, pão, queijo, queijo e gente de má índole é farinha do mesmo saco.

Tua batata tá assando. Perigo iminente! Farinha pouca? Meu pirão primeiro. A mais pura definição do salve-se quem puder.

A situação vai melhorar? Batata: junto com as boas novas vem, no pacote, um angu de caroço. Enquanto os políticos falam abobrinhas e são tratados a pão de ló, o povo continua comendo o pão que o diabo amassou. Dá pra pagar as contas? Mamão com açúcar? Que nada... Sobreviver continua osso duro de roer.

Essas e outras tantas expressões, todo brasileiro sabe. Conhecê-las faz parte de nossa educação florestal; desconhecê-las é desentender as motivações que alimentam nossa alma.

Educação culináriaEm um país de tanta abundância e tão pouca oportunidade para tantos, há quem acredite que a nova classe C está destinada a ficar por cima da carne seca e tirar a barriga da miséria. Nem nos causa estranheza que nossos ministros sejam fritados ou a liberação de recursos para a saúde e a educação seja eternamente cozinhada em fogo brando e mantida em banho-maria. Aliás, quem é que não sabe que tudo aqui acaba em pizza?

No Brasil, fast-food e alopatia convivem na boa com a mamadeira, a canjica, os chás de erva-cidreira e erva-doce. Geleia global. Tudo bem que os americanos tenham o seu "piece of cake", designativo das coisas fáceis de obter. Houve tempo em que eles só souberam da fartura e não sentiram na carne o que é ter de descascar um abacaxi, resolver um pepino, encarar uma batata quente e enfrentar o angu de caroço que é o nosso dia a dia.

Afinal, mesmo em crise, eles ainda ganham em dólar. E comem como poucos...


José Paulo Oliveira é professor, consultor de comunicação e coautor, ao lado de Carlos Alberto Motta, de Como Escrever Melhor (Publifolha, 2000).

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