TEXTO RETIRADO DO SITE AMÁLGAMA
Em janeiro de 2011, um policial fazia uma palestra sobre segurança na
Escola de Direito Osgode Hall em Toronto, no Canadá. Em determinado momento disse:
“as mulheres devem evitar vestir-se como vadias, para não se tornarem vítimas
de ataques”. Uma frase que com certeza muitas pessoas que lerão esse texto já
escutaram e/ou repetiram, mas que precisa urgentemente ser questionada. Quando
a polícia e outros órgãos do Estado perpetuam o mito e o estereótipo da “mulher
vadia” estão falhando em relação à segurança das mulheres.
Mesmo sabendo que não existem espaços seguros e que somos também responsáveis por evitar a
violência de modo geral, a roupa que a vítima usa, a quantidade de álcool que
ela ingeriu sua profissão, sua vida pregressa, sua aparência e qualquer outra
coisa que tenha sido usada para depreciá-la não podem ser usadas como atenuante
ou justificativa da violência.
A Marcha
das Vadias surge no Canadá como uma
resposta à afirmação do policial. Uma reação contra a culpabilização e coerção
das vítimas de violência sexual. Há anos mulheres são ensinadas a não serem
estupradas, mas nossa sociedade não parece preocupada em ensinar os homens a
não estuprarem. Mulheres que sofreram algum tipo de violência sexual não são
vadias. Nenhuma mulher é estuprável. Nenhuma roupa é um convite para o estupro.
O que começou com um pequeno grupo de pessoas que imaginavam contar com
a ajuda de amigos mais próximos, tornou-se um movimento mundial. Mulheres de
diversos países uniram-se e saíram às ruas para reivindicar respeito, autonomia
e liberdade. Lésbicas, heterossexuais, transexuais, novas, velhas, magras,
gordas, negras, brancas, indígenas, prostitutas, advogadas, professoras, donas
de casa. Diversas e inúmeras mulheres mostraram que o episódio em Toronto não é
um fato isolado. É preciso provocar a sociedade a repensar suas práticas e
valores.
No Brasil, a partir do início do segundo semestre de 2011, as vadias tomaram as ruas em diversas cidades. Em 2012, as mulheres já
começaram a ocupar as ruas novamente com irreverência e conscientização. A
maioria programou-se para tomar o Brasil em uma grande Marcha Nacional que
acontecerá no dia 26 de maio. Brasília, Belém, Belo Horizonte, Campo Grande,
Curitiba, Florianópolis, Natal, Salvador, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro,
São Paulo, Vitória e outras cidades participarão. Confira datas, horários e
locais no Calendário das Marchas no Brasil.
A ofensa ressignificada
A palavra usada pelo policial canadense foi “slut”. No Brasil,
podemos traduzí-la como vadia ou vagabunda. Não é uma palavra neutra.
Historicamente, “vadia” é usado predominantemente com conotação negativa.
Referindo-se na maioria das vezes à sexualidade da mulher, sendo um insulto e
uma acusação do caráter da pessoa. A intenção por trás da palavra é ferir,
ofender e explicitar que algumas mulheres valem menos que outras.
Para as mulheres, a palavra “vadia” não tem o mesmo significado que para
os homens. Vadias e vagabundas são todas as mulheres que ousam ir contra as
regras do moralismo vigente. Apropriar-se do termo “vadia” e ressignificá-lo é
uma das principais estratégias do movimento. Se não posso usar a roupa que
quero sem ser julgada por isso, se a liberdade das mulheres não é plena, então
somos todas vadias.
Muitas pessoas acham ofensivo participar de uma marcha com esse nome.
Não querem associar-se ao termo. Tomar para si a palavra “vadia”, tantas vezes
usada para machucar, é uma forma de empoderamento, por meio de uma reação
questionadora. Porém, é preciso ter em mente que há diferentes tipos de
desigualdades e violências. Por isso é interessante ver que várias marchas têm
buscado a inclusão e a coletividade, além do debate em relação a gênero, raça e
sexualidade.
Há o estereótipo da mulher recatada, doce, frágil e virginal. Porém, há
também o da mulher hipersexualizada, interesseira e promíscua. As mulheres não
estão em lados opostos, confinados em estereótipos. Negras, brancas, indígenas
e pardas sofrem de maneiras diferentes no cotidiano social. Da mesma maneira,
lésbicas, transexuais e transgêneros também se encontram em diferentes posições
de marginalização. Enxergar essas diferenças é fundamental para reelaborar
dinâmicas de poder e acabar com a invisibilidade de certos grupos. Vadias somos
todas, mas a homofobia, o racismo e a misoginia estão intrinsecamente
relacionados.
Números da violência
De acordo com o Mapa da Violência 2012 – caderno complementar: homicídio de mulheres no
Brasil, em uma análise de 80 países, o Brasil ocupa a sétima colocação com uma
taxa de 4,4 homicídios para cada 100 mil mulheres. Com o agravante de que em
68,8% dos atendimentos a mulheres vítimas de violência, a agressão aconteceu na
residência da vítima.
Segundo dados do Dossiê Mulher 2011, no Rio de Janeiro, por exemplo, as mulheres continuam
sendo as maiores vítimas dos crimes de estupro (81,2%) ameaça (65,4%) e
lesão corporal (62,9%). Mesmo com a criação da Lei nº. 12.015/09, que fez
com que algumas condutas, antes intituladas como Atentados Violentos ao Pudor,
passassem a ser
contabilizadas como estupros, ampliando a abrangência do crime, incluindo também os homens, as mulheres permanecem como as principais vítimas de violência sexual.
contabilizadas como estupros, ampliando a abrangência do crime, incluindo também os homens, as mulheres permanecem como as principais vítimas de violência sexual.
A pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços
Público e Privado da Fundação
Perseu Abramo/SESC mostra que:
Uma em cada cinco mulheres consideram já ter sofrido alguma vez “algum
tipo de violência de parte de algum homem, conhecido ou desconhecido”. Diante
de 20 modalidades de violência citadas, no entanto, duas em cada cinco mulheres
(40%) já teriam sofrido alguma, ao menos uma vez na vida, sobretudo algum tipo
de controle ou cerceamento (24%), alguma violência psíquica ou verbal (23%), ou
alguma ameaça ou violência física propriamente dita (24%). O parceiro (marido
ou namorado) é o responsável por mais 80% dos casos reportados. Os pedidos de
ajuda são mais freqüentes (de metade a 2/3 dos casos) após ameaças ou
violências físicas, com destaque para as mulheres que recorrem às mães, irmãs e
outros parentes. Mas em nenhuma das modalidades investigadas as denúncias a alguma
autoridade policial ou judicial ultrapassa 1/3 dos casos.
A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 registrou em 2011, segundo
seu relatório anual: 667.116 chamadas, média de 1.828 ligações por dia. Dessas,
foram 74.984 ligações (11,24%) com denúncias de violências e 35 (0,01%) com
relatos de tráfico.
Do total de ligações referentes às denúncias com relatos de violência,
registra-se que:
a) 45.953 atendimentos (61,28%) foram relatos de violência física
b) 17.987 atendimentos (23,99%) de relatos de violência psicológica
c) 8.176 casos (10,90%) de violência moral
d) 1.298 casos (1.73%) de violência sexual
e) 1.227 atendimentos de violência patrimonial
b) 17.987 atendimentos (23,99%) de relatos de violência psicológica
c) 8.176 casos (10,90%) de violência moral
d) 1.298 casos (1.73%) de violência sexual
e) 1.227 atendimentos de violência patrimonial
Notório é o destaque de denúncias de cárcere privado. A Central
notificou 343 casos, o que equivale a quase 1 caso por dia. E, também, 35
casos de tráfico de mulheres.
A violência contra a mulher é um problema social. Pautada, na maioria
das vezes, na ideia de que a mulher existe para servir ao homem, exige, além da
ação política, esforço reflexivo da sociedade para a mudança de paradigmas. O
homicídio de homens no Brasil é alto, especialmente na população jovem e negra,
mas esses homens morrem nas ruas, enquanto as mulheres são agredidas dentro de
casa, por pessoas que elas conhecem e com as quais convivem. Ao sair às ruas
para lutar pelo fim da violência contra a mulher queremos questionar a lógica
de nossa cultura machista, racista, lesbofóbica e transfóbica.
Violência sexual é um crime difícil de ser denunciado. Envolve muita
vergonha e exposição da intimidade. Ao culpabilizarmos as vítimas pelos crimes
cometidos, ao colocarmos sobre elas o peso de uma punição por não terem se
comportado na noite em que bebeu demais ou no dia em que saíram com uma saia
mais curta, as pessoas são encorajadas a não denunciarem, a não procurarem
ajuda. Violência sexual não é sobre roupas, nem mesmo sobre sexo, é sobre
poder. Apoderar-se de nossa sexualidade não pode significar que estamos nos
abrindo para uma expectativa de violência, seja nos relacionamentos ou na
prostituição.
A Marcha das Vadias é um movimento que pretende unir não só mulheres,
mas pessoas de todos os gêneros e orientações sexuais, de diferentes estilos de
vida, níveis de emprego e educação, todas as raças, idades, habilidades e
experiências para fazer uma declaração contra a agressão sexual e pelo respeito
às vítimas de violência. Se ser livre é ser vadia, somos todas vadias.
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