quinta-feira, 3 de maio de 2012

L. F. VERISSIMO JORNAL ZERO HORA 03 de maio de 2012.


Para alguém que como eu acha que falta alguma coisa quando está sem o celular, está crônica é uma maravilha. Sabemos que nos comportamos dessa maneira ridícula mas nada fazemos para mudar. Só talento espetacular desse gênio para nos colocar no devido lugar.


Os resistentes

Não sucumbi ao telefone celular. Não tenho e nunca terei um telefone celular. Quando preciso usar um, uso o da minha mulher. Mas segurando-o como se fosse um grande inseto, possivelmente venenoso, desconhecido da minha tribo.

           Eu não saberia escolher a musiquinha que o identifica. Aquela que, quando toca, a pessoa diz “É o meu!”, e passa a procurá-lo freneticamente, depois o coloca no ouvido, diz “alô” várias vezes, aperta botões errados, desiste e desliga, para repetir toda a função quando a musiquinha toca outra vez.

Não sei, a gente escolhe a musiquinha quando compra o celular?

– Tem aí um Beethoven?

– Não. Mas temos as quatro estações do Vivaldi.

– Manda a primavera.

            Porque a musiquinha do seu celular também identifica você. Há uma enorme diferença entre uma pessoa cujo celular toca, digamos, Takefive e uma cujo celular toca Wagner. Você muitas vezes só sabe com quem realmente está quando ouve o seu celular tocar, e o som do seu celular diz mais a seu respeito do que você imagina. Se bem que, na minha experiência, a maioria das pessoas escolhe músicas galopantes – como a introdução da Cavalleria Rusticana ou a ouverture do Guilherme Tell – apenas para já colocá-la no adequado espírito de urgência, ou pânico controlado, que o celular exige.·.
Sei que alguns celulares ronronam e vibram, discretamente, em vez de desandarem a chamar seus donos com música. Infelizmente, os donos nem sempre mostram a mesma discrição. Não é raro você ser obrigado a ouvir alguém tratando de detalhes da sua intimidade ou dos furúnculos da tia Djalmira a céu aberto, por assim dizer. É como o que nos fazem os fumantes, só que, em vez de nosso espaço aéreo ser invadido por fumaça indesejada, é invadido pela vida alheia. Que também pode ser tóxica.

          Não dá para negar que o celular é útil, mas no caso a própria utilidade é angustiante. O celular reduziu as pessoas a apenas extremos opostos de uma conexão, pontos soltos no ar, sem contato com o chão. Onde você se encontra tornou-se irrelevante, o que significa que em breve ninguém mais vai se encontrar. E a palavra “incomunicável” perdeu o sentido. Estar longe de qualquer telefone não é mais um sonho realizável de sossego e privacidade – o telefone foi atrás.

          Não tenho a menor ideia de como funciona o besouro maldito. E chega um momento em que cada nova perplexidade com ele torna-se uma ofensa pessoal, ainda mais para quem ainda não entendeu bem como funciona torneira.

          Ouvi dizer que o celular destrói o cérebro aos poucos. Nos vejo – os que não sucumbiram, os últimos resistentes – como os únicos sãos num mundo imbecilizado pelo micro-ondas de ouvido, com os quais as pessoas trocarão grunhidos pré-históricos, incapazes de um raciocínio ou de uma frase completa, mas ainda conectados. Seremos poucos, mas nos manteremos unidos, e trocaremos informações. Usando sinais de fumaça.

Nenhum comentário:

Postar um comentário